sábado, 6 de junho de 2009

ASSINALADOS



(...) Alguém, cá de baixo, que andasse ao meu lado e me acompanhasse angustiadamente na procura de um recinto de fogo, em que todos temos os olhos quando sorrimos depois de termos compreendido que alguém nos atraiçoou.
Mas é escusado. A negrura que estiver para vir há-de vir toda. Todos aqueles frades felizes são o cenário da minha comédia. E é por isto, por ser sozinho que tenho de enfrentar a culpa, a dor - que eu nem chorar consigo. A vontade de chorar represente uma certa superação das funduras onde estamos, acompanha uma certa comunhão de dor, um certo vislumbre de sentido para a solidão. Resta-me continuar a esvaziar as mãos, esquecer, renunciar. Porei os meus passos no movediço que os pés recusam e entrarei no vago e no acaso, perdido mas tenso e de ferro.(...)
Assinalados - FERNÃO DE MAGALHÃES GONÇALVES
À sua memória está instituído um Prémio de Poesia

1 comentário:

  1. ...brevemente caminharia na estrada, de mala na mão, os sapatos a chiar e partiria para longe dali, para bem longe dali... Uma bela manhã. Quem dizia que traíra a vocação divina? Samuel assentava os pés no chão. Era necessário desafiar toda a prudência e todo o temor. Iria falhar no mundo? Pois queria ir ver como se falha. Sem medo.
    Veio à janela. Sidónia aparecia de novo na manhã, desenhando-se no fundo do nevoeiro. O portão do convento bateu. Samuel ouviu depois as sandálias de Frei Miguel arrastadas sobre o saibro da ladeira. Um saco às costas, as canelas negras, nuas sob a fímbria rota do hábito, o rosto erguido para o cimo do Monte Negro. Frei Miguel ultrapassaria a colina, pediria esmola na outra falda do monte, faria sermões piedosos nas feiras de gado e beberia nas adegas mais recônditas do interior.
    Quando o seu vulto desapareceu no primeiro pinhal, Samuel encheu os olhos nos giestais floridos do Monte Negro, escutou a sua respiração, sentiu-se restituído a si próprio e pareceu-lhe evaporar-se purificado daqueles músculos de granito para os confins do dia.
    Seria só a lenda, que corria na Crónica do Convento, quem lhe fazia comparar o Monte Negro ao Sinai, ao Tabor ou ao Fuji Yama?...
    ...Os "Dias Livres" era o título do seu último poema. ...
    (...)

    In Assinalados - Fernão de Magalhães Gonçalves

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