domingo, 14 de abril de 2024

DOURO Coroado - texto crítico da Dra Júlia Reis Serra

 


Douro Coroado, de Manuela Morais


Este livrinho, de Manuela Morais, é um cântico ao Douro, não apenas ao rio, mas à

própria região. A autora refere no Prelúdio: “Este livrinho é constituído por quatro dezenas de

poemas. Mais dois, que se expressam à parte do tema Douro Coroado, exemplificam-nos como

é essencial, fixar as memórias, a saudade e a esperança dos lugares que em profundidade nos

apaixonaram, mas muitíssimo mais importante é guardar, no coração, as pessoas que nos

amaram e privaram no nosso quotidiano”(p.10). Cada poema é composto por vinte e um

versos, número que, pela sua simbologia, representa a perfeição, a ligação entre o céu e a

terra e a sabedoria divina. Vinte e um era também o momento de atingir a maioridade e da

responsabilidade.

As raízes telúricas durienses são aqui evocadas para exprimir o trabalho árduo que o

homem padeceu ao rasgar as montanhas e transformar a terra em socalcos para produção do

néctar divino, o afamado vinho do Porto; portanto, a referência aos deuses pagãos -- Dionísio

(Baco) que desposa Ariadne, uma deusa egeia da vegetação, nomeadamente das árvores

–representa a união do casal divino. Há, por isso, poderes que excedem o natural através dos

mistérios. A terra duriense é apresentada como uma espécie de paraíso (éden paradisíaco)

serpenteada pelo Douro que participa em todos os versos ora como objeto amado, ora como

cenário de amantes que, nas suas margens, viveram, num passado distante, o seu primeiro

amor.

A conjugação dos sentimentos com a água arrasta o leitor para o nascimento do ser e

do amor e, simultaneamente, complexifica a leitura dos poemas, porquanto o sujeito poético

extravasa as emoções para o Douro, gerando uma personificação entre o eu poético, o tu e o

nós. Nesta osmose há uma triangulação amorosa visível no recurso aos determinantes e

pronomes: “Este Douro sagrado/ dá-me vida, mil anos de vida/ quando o mundo parece

terminar! /Segura-me a memória/da força do teu olhar, /a alegria do forte/abraço, / sentir o

teu peito/no meu/ a descansar…” O jogo de – este, me, teu e meu – coloca o Douro como

participante e fonte de esperança da vida do sujeito, mas assume prioritariamente o papel de

testemunho do amor entre dois amantes, ao permitir que a memória faça renascer o passado.

Assim, a interpretação direciona-se mais para o amor natural entre seres e não metafórica,

plasmada no rio. A verdade é que as designações selecionadas para o rio são tantas e tão

elevadas que a água do Douro chega a sugerir a corrente sanguínea que alimenta o corpo e o

espírito, num estado de “estranho equilíbrio/de ficar ou de partir…” (p.54).

Após as maravilhosas e misteriosas palavras dirigidas ao Douro, os poemas revelam

mais a intimidade do sujeito poético, quando este confessa que as roseiras secaram “no nosso

jardim”, revelando sofrimento com a ausência do tu “assumindo o vestígio da tua ausência”

(p.52) e, ao reconhecer o poder do Douro, suplica-lhe: “Douro, meu Douro encantado,

/ressuscita/os corpos sem vida! O amor, /o meu primeiro amor, não se pode perder, (p.56).

O Douro é nascente de esperança e incentiva o sujeito de enunciação a viver o amor

com urgência e a saborear “um cacho de uvas de moscatel”; esse Douro que foi companheiro

da infância, do amor e continua a pulsar na vida dos seus conterrâneos, é um Douro misterioso

e sagrado, como designou a autora. Mais ainda, ele foi “coroado” para simbolizar a reunião de

forças exteriores e interiores com valor ético e cósmico.

Este livrinho revela-nos a diferença entre a vida e a morte, gerando espaços de

“sentimentos de leveza” que a escrita ajuda a preencher, através da capacidade/consciência

do sujeito poder relacionar as várias sequências temporais.

Parabéns à autora!

Júlia Serra

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