terça-feira, 23 de junho de 2015

ANTÓNIO CABRAL



(. . .)
À luz de outro mesmo rumor, estará mais perto de mim. Os camponeses que em ti se reflectiam riam-se ao beberem no teu vinho o fogo roubado aos deuses. Cantavam: alto vai o setestrelo, alta vai a lua nova, e ao outro dia lá estáveis todos, cada qual ao pé da sua cova, enquanto os passos indecifráveis do lagarto evoluíam. E eu fui de facto para bem longe, crescendo no meio de cedros ornamentais e livros tão altos como eles. Às vezes sentia vertigens e mandava-tas dentro de um envelope com fios de seda e sede daquela fonte de água translúcida onde o firmamento dormia, apesar de tudo, e continuavas a beber, enviando-ma já convertida em palavras nas cartas que ainda guardo numa gaveta. Agora, como sempre, vejo-te derreado ao peso de tão oblíquo azul e eu é que me sinto o chasco do carrasco dentro desta página que certamente alguém queimará com esteva e rosmaninho na fogueira de S. João, ao menos isso, bem antes de passar um milhão de anos. Obrigado pela tua memória.


Texto de ANTÓNIO CABRAL
Livro A TENTAÇÃO DE SANTO ANTÃO


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